sexta-feira, 27 de abril de 2007

Lá, onde a vida se joga...

por Rui Corrêa de Oliveira *

É lá, onde a vida se joga que nós estamos. Diante da Irene que nos apareceu de cara assustada, tremendo de medo, confusa, baralhada, desesperada… Tinha sabido que estava grávida outra vez, havia uma semana. O companheiro perdeu a cabeça e insultou-a, acusando-a de ser a culpada por não ter tomado a pílula. A solução era só uma: «abortar e pronto! É pegar ou largar: ou despachas isso ou vai à tua vida, que eu não estou para aturar desleixadas». «Não, abortar, não! Mas sozinha que hei-de fazer?» À Mãe a quem recorreu, encontrou bêbeda, meio adormecida sobre a mesa da cozinha, que é sala e que é quarto, naquele barraco húmido com vista para a pista da Portela. Passou os dias com a angústia da hora da chegada a casa do companheiro. Passou as noites encolhida a um canto da cama com medo que ele lhe tocasse. Sem saber para onde se virar foi até ao Centro, pedir ajuda à assistente social. Foi a primeira pessoa que a ouviu, foi o primeiro olhar que a olhou como gente, foi a primeira vez, desde o começo do pesadelo, que alguém parou diante dela para pensar na sua vida e na sua condição. Foi então que ouviu falar de nós. Talvez a pudéssemos ajudar…

Foi a tremer que nos ligou pelo número grátis. Marcou lá ir no dia seguinte… e ali estava ela, sempre a tremer. O primeiro quarto de hora foi feito de silêncio e monossílabos, incapaz de alinhavar uma frase. A custo foi acalmando… a pouco e pouco descreveu a sua história e a sua situação. Já não regressou a casa. Nesse dia foi na nossa Casa de Acolhimento que pela primeira vez conseguiu dormir de um sono só. Depois, foi o lento reconstruir de uma personalidade desmantelada. Exames médicos, acompanhamento psicológico e companhia humana. Enquanto avançava a sua gravidez foi percebendo que havia vida para além do horizonte de fome e violência a que estava habituada. Seis meses depois nascia o Daniel! Um ano depois aprendera as “artes da casa”, sabia cozinhar e passar a ferro e já era capaz de ajudar no cabeleireiro onde arranjara emprego. Entrou de “porteira” num prédio das avenidas novas, tinha um quarto para si e para o Daniel, cozinha e casa-de-banho. Renascera para a vida e para o mundo, um mundo novo e diferente onde a vida é possível, com dignidade e futuro. Um dia, o Daniel haveria de ser homem, aquele mesmo que esteve para acabar numa hemorragia provocada. A história desta Irene é uma história feita de mil histórias verdadeiras, mil vidas reais, mil dramas autênticos.

É aqui, onde a vida se joga, paredes-meias com a morte, que nós estamos, porque acreditamos que a vida é possível se nos deixarem ajudar as “Irenes” desta cidade com quem nos cruzamos sempre distraídos e sempre apressados.

É o que fazemos em cada dia... todos os dias... se nos ajudarem a ajudar.
* presidente do PAV - 2003 a 2007

1 comentário:

Anónimo disse...

é bem presidente!